Valor Econômico, 11 de dezembro de 2007
Padarias em crise, Anac em festa
Padarias mudam de perfil, transformando-se em restaurantes a quilo, em restaurantes de "prato feito", ajustando-se às mudanças dos hábitos alimentares e às tendências da vida moderna, porque as mulheres trabalham e todos fazemos refeições fora de casa
Padarias mudam de perfil, transformando-se em restaurantes a quilo, em restaurantes de "prato feito", ajustando-se às mudanças dos hábitos alimentares e às tendências da vida moderna, porque as mulheres trabalham e todos fazemos refeições fora de casa. Essa é a notícia e interpretação do telejornal, em meio a notícias sobre a crise do leite adulterado. Mas isso é o ralo senso comum, uma visão superficial e apressada de um fenômeno muito mais complexo.
As padarias estão fechando, sim. Ou mudam de perfil. Mas isso tem tudo a ver é com a Anac e a crise dos aeroportos. Tem também tudo a ver com a Anvisa e a crise do leite. Tudo a ver com a ANP e as máfias dos combustíveis. Tudo a ver com os atropelamentos e morte de crianças em cima das calçadas. Tudo a ver com a guerra concorrencial no Complexo do Alemão.
O leite resfriado, com embalagens de vidro, hoje disponíveis em feiras de antiguidade, como a de San Telmo, era deixado na porta de casa. Depois, passou a ser vendido em saquinhos plásticos, nas padarias. Havia o leite C, o leite B e, nos tempos dos Delfim´s boys, para fraudar não só o leite, mas principalmente fraudar os índices de inflação, havia o leite 2,3% de gordura, o leite reconstituído, o leite Vivácqua.
O pão era comprado nas padarias. E, junto com o pão, se comprava o leite fresco. Aliás, o pão também era entregue em casa, com o padeiro fazendo fon-fon na trombetinha de seu triciclo. O afiador de facas e tesouras, o realejo, o padeiro, cada um tinha seu som específico, sua vinheta, seu bordão, em um tempo em que poucas casas tinham campainha ou telefone, e as visitas batiam palmas na porta para anunciar sua, quase sempre, inesperada chegada.
O gelo não era diferente. As geladeiras, em sua maior parte, não faziam uso direto da engenharia, da termodinâmica, do ciclo frigorífico. E havia uma gaveta, na parte inferior, onde se depositava a barra de gelo. A aparência era de geladeira. Mas era apenas uma caixa isotérmica, como se fosse uma caixa de isopor com gelo dentro. De manhã, antes ainda do verdureiro que vinha do Marapé, com sua carroça puxada a cavalo, passava o caminhãozinho do gelo. Com uma proteção de borracha preta na mão, o entregador pegava uma barra enorme de gelo, abria o portãozinho, passava pelo jardim e, gritando "geleeeeirô", a impulsionava para deslizar pelo corredorzinho lateral até o fundo do quintal, onde estava a porta da cozinha.
Muita coisa mudou. Novas tecnologias foram desenvolvidas. Mais que as novas tecnologias, no entanto, são novas as regulações, impostas por governos autoritários e autoridades corruptas, que estão provocando as mudanças nas padarias, nas quitandas, nos postos de gasolina, na agricultura, inviabilizando as empresas familiares e, com isso, transferindo já não renda, mas patrimônio, das pessoas físicas, das famílias, para as corporações multinacionais ou para as "redes mafiosas" que dominam o varejo.
Uma caríssima embalagem "longa vida" não conseguiria competir, no mercado brasileiro, com tanto e generalizado sucesso, contra o leite refrigerado em saquinhos plásticos, se não houvesse uma cumplicidade criminosa do aparelho regulatório. A parte mais visível é a liberação de aditivos químicos para o leite longa vida. A parte mais incrível é supor que colocar aditivo no leite é progresso científico, quando o óbvio é que progresso tecnológico, de verdade, seria fazer chegar leite fresco, sem aditivos nem contaminantes, de alto valor nutritivo, não para alguns, mas para todos. Isso sim seria inteligência e progresso.
Essa mudança regulatória, no mundo dos "leites", responde pela extinção de vastas frações da classe média, ao inviabilizar as empresas familiares em favor de tecnologias e insumos desnecessariamente importados, em favor de cadeias de supermercados - tudo contra o padeiro, tudo contra a geração de empregos, contra a justiça social, a cidadania e os direitos do consumidor. Enfim, se as leiterias já não vendem leite, também as padarias já não venderão pão.
É que, depois do leite, também o pão passou a sofrer o mesmo processo. Mães cuidadosas compram pacotes de bisnaguinhas, no supermercado, para seus filhinhos. Tudo muito cômodo, tudo aparentemente muito fofo, muito higiênico, muito saudável e muito moderninho. Talvez julgando que esses pães são construídos por alguma subsidiária da Microsoft, não se perguntam como é que um pãozinho logra permanecer macio durante três semanas ou mais. E sem embolorar.
Todo pão recebe adição de enzimas. Uma delas é a alfa-amilase, produzida por bactérias transgênicas, verdadeiras bio-usinas industriais, ajeitadas geneticamente para fabricar enzimas. No queijo não é diferente. Todo queijo que está no mercado, praticamente todo, é fabricado com enzimas transgênicas, em substituição ao coalho tradicional. Nada disso consta em nenhum rótulo. Nenhum consumidor sabe disso. O que o consumidor fica sabendo, pelos rótulos, é que batatinha palha, com 48,5% de gordura, é zero trans.
A crise do leite adulterado vem sendo enfocada, pela mídia e pela polícia, como resultado de atos de malfeitores estereotipados, de personagens bizarros de alguma Gothan City, de forma maniqueísta e espetacularesca, mas alienante, emburrecente e simplória. A crise do leite não é do mundo da saúde pública. Ela é do mundo financeiro. Ela é um fenômeno concorrencial, onde dois modelos de país estão em conflito.
Para entender o fenômeno, melhor que estudar metodologia analítica para determinação laboratorial de resíduos de peróxido de hidrogênio ou hidróxido de sódio, mais pedagógico seria olhar para a ANP, para a Anatel, para o Denatran, para a Anvisa e seus dois novos dirigentes que foram ministros e deputados do PMDB e do PCdoB. Ou, para que mesmo um ex-ministro, um ex-deputado, haveria de cobiçar um carguinho técnico, obscuro e mal pago como esses ?
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Luiz Eduardo R. de Carvalho, engenheiro de alimentos, é professor da UFRJ (lec@infolink.com.br).